ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES (2023) — CRÍTICA

Raquel Oliveira
8 min readOct 23, 2023

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Uma das cenas mais bonitas do longa é exatamente nessa introdução, quando membros da tribo enterram um cachimbo e logo em seguida dançam na chuva de óleo preto, vindo exatamente debaixo da terra. Como a representação da entrega de um costume e a descoberta de algo que mudou para sempre o destino desse povo.

Por: Raquel Oliveira

Martin Scorsese é um dos maiores defensores vivos do cinema. Senão o maior. Me recordo agora enquanto começo esse texto, de uma entrevista que ele deu alguns anos atrás, onde dizia que se sentia triste por “seu tempo estar acabando”, porque o que mais ama é cinema e contar histórias, e que ainda há muitas que ele quer contar. E eu espero e torço muito termos mais filmes de Martin Scorsese. Ele tem 80 anos de idade e mais de 50 no cinema. E é exatamente no auge dos seus 80 anos, que mostra a tremenda habilidade de se reinventar na sua própria filmografia e vai além, lançando entre tantos filmes genéricos, descartáveis e apáticos, uma grandiosa obra-prima e um dos melhores filmes do ano, evidenciando que sabe fazer Cinema (com C maiúsculo) como poucos e ditando que é assim que se faz. Mesmo que não precise comprovar tudo isso, precisamos de Martin Scorsese e mais cineastas como Martin Scorsese.

Baseado no best-seller de mesmo nome do jornalista David Grann, Scorsese já tinha interesses em retratar a história da nação Osage. O livro tem uma abordagem mais investigativa, com um apanhado de conteúdo histórico, reportagens, documentos e registros de investigação, e a primeira versão do roteiro era realmente voltada mais para o lado investigativo. Não foi, portanto, possível ser realizado devido a COVID-19. Desde então, mudanças aconteceram, a Apple TV entrou como uma das produtoras do longa e Scorsese mudou o rumo do roteiro, não sendo mais um filme investigativo e sim dando chance de contar a história de uma tribo assolada pela ganância humana.

O início do século XX é marcado como uma época em que indígenas nascidos nos EUA não tinham direitos à cidadania, eram vítimas de racismo, preconceito, violência e não eram vistos como pessoas dignas pela sociedade branca e elitista americana. Em “Assassinos da Lua das Flores”, Scorsese traz para as telonas a história esquecida da nação indígena Osage, do estado de Oklahoma, que nos anos 1920 se tornou um dos povos mais ricos do mundo ao encontrar petróleo em suas terras. O que equivale hoje em dia em US$400 milhões de dólares. Tanto dinheiro atraiu o interesse do homem branco norte-americano. Golpes, furtos e assassinatos começaram a acontecer naquela região. E o desenrolar da história só fica pior, entre os anos 1921 e 1925 o genocídio dos membros da tribo Osage não era investigado por nenhuma autoridade, nem da polícia e nem da política. Essa “Onda de Terror” que ficou conhecida pela tribo e todo o desenrolar desses crimes, resultou na criação do FBI, a Polícia Federal americana.

A sequência que abre “…Lua das Flores”, com os Osage em seus costumes, religião e falando a sua língua nativa, exemplifica exatamente que essa foi a melhor abordagem que o cineasta escolheu contar essa história. Scorsese costuma sempre deixar bem óbvio e até salta na tela informações e passagens do contexto para não deixar o espectador perdido ou confuso. E isso não é prepotência, jamais. O contrário, é a maneira do diretor de tentar nos fazer compreender e entender exatamente o que ele pensou para aquela obra, o que ele escolheu contar e como contar.

Porque o Cinema é, em sua principal essência, sobre imagens. Na verdade, um dos maiores desafios que o Cinema nos proporciona é esse, de tentar interpretar o que cada frame, cena, sequência está querendo dizer e nos mostrar, e o que aquele diretor está querendo nos contar. O Cinema também, claro, é essa ferramenta para contar histórias através dessas imagens. E Scorsese potencializa tudo isso neste filme.

Uma das cenas mais bonitas do longa é exatamente nessa introdução, quando membros da tribo enterram um cachimbo e logo em seguida dançam na chuva de óleo preto, vindo exatamente debaixo da terra. Como a representação da entrega de um costume e a descoberta de algo que mudou para sempre o destino desse povo.

Como o longa vai construindo sua trama, instalando um resumo do contexto (contexto esse que vai sendo colocado durante toda a trama) histórico dos Osage, o dinheiro e os primeiros assassinatos, desenrola quando Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio) chega na pequena cidade em torno das terras indígenas. É até através dele que temos um primeiro impacto. A população indígena majoritária, ostentando riqueza, com roupas que se destacam, sendo proprietários de carros, com motoristas brancos, serviçais brancos e em minoria e servindo-os. Dita que naquele começo, o que parecia próspero para os indígenas, na verdade estava para ser tomado aos poucos. Logo, todo esse impacto visual segue com planos abertos, em tom de mostrar que era uma terra imensa, tudo verde e grande, terra que ia ser explorada e posteriormente roubada. O longo diálogo entre Ernest e William Hale (Robert De Niro), estabelece as intenções dos homens diante de uma fortuna que acham incrivelmente fácil de ser roubada.

Mollie (Lily Gladstone) entra em cena para agraciar com seu carisma e força, mas antes de chegar a esses pontos, mais sobre os Osage é mostrado em tela. Era um povo que não tinha nada e passaram a ter tudo, se rendendo também às vestes e luxo que vieram com o “dinheiro do homem branco”. Mollie e sua família em específico é o centro da trama.

Há algo que ainda sigo pensando, em como Scorsese segue essa dinâmica, que começa de um jeito e modifica, porque é exatamente também o meio de contar que todos os membros dessa tribo foram vítimas. A família de Mollie toda formada por mulheres, são vistas como sozinhas. E quando sozinhas, o silêncio pairava em torno de seu lar, os costumes, a língua nativa, eram seguidos. Mas atraem atenção de homens golpistas de olho em seu dinheiro, porque, dizendo em outras palavras, são alvos fáceis. Com manipulação e interesse explícito, eles foram se aproximando. Scorsese toma bastante tempo para nos dizer que a dinâmica inicial da família de mulheres é lentamente substituída pela dinâmica de uma casa barulhenta, onde se casam com os brancos, têm filhos mestiços. Porque nem Mollie e sua família escaparam das atrocidades cometidas de então seus maridos, cunhados, e “amigos” da família. Traçando também um paralelo com o começo do longa. No começo, tinha mais indígenas na cidade, mas aos poucos isso vai mudando, se modificando e passamos a perceber que após tantas mortes e nenhuma investigação, vemos mais brancos que indígenas em todos os lugares da região. É claro, um trunfo da montagem do longa. Poder ir, voltar na trama, amarrar pontas soltas.

“…Lua das Flores” é um drama, faroeste, suspense. Mesmo não assistindo tantos filmes de faroeste, fico refletindo o quanto o filme tenta também reparar a pequena parte dos filmes western, principalmente os de Hollywood. Alguns que contém como base do tema a luta dos indígenas pelas suas terras contra pistoleiros com estereótipos e xenofobia. Neste, Scorsese cria seu modern western em uma impactante cinematografia, direção de arte e ambientação, exemplificando quem é realmente o vilão.

Scorsese dita o ritmo não sendo imparcial, ele não faz nenhuma adoração quando mostra o pior do ser humano e de principalmente do homem branco norte-americano. Deixando bem explícito o quanto esse tipo é o pior pesadelo de uma nação e de uma comunidade minoritária, desde sempre até nossos dias atuais, se quisermos pensar assim.

Mesmo com a consciência que é um diretor branco, de 80 anos, e que não tem local de fala nenhuma, faz um filme sobre uma nação indígena que sofreu genocídio, uma comunidade que foi quase dizimada e expulsa da sua própria terra, usando do seu lugar de privilégio e potência que tem no cinema, para retratar essa história.

O elenco de atores de primeiro nível faz das principais aparições como os protagonistas DiCaprio e De Niro a aparições mais pequenas, como de Brendan Fraser e Jesse Plemons, atuações e impressões marcantes, mas Lily Gladstone que é a maior potencia do filme. O seu carisma e olhar é o principal fator. Lily não precisa de performance visceral que a arraste para extremos atuando — porém, de fato, há momentos que o roteiro exige que ela entregue de modo que consegue fixar em nossa memória até os seus gritos de dor nas perdas –, mas ela traz a presença, o olhar forte, expressivo. A sua voz, o seu tom é parte da atuação. Ela narra, dialoga, conversa, e em muitos momentos em vários tons, tornando assim perceptível para nós, compreender exatamente os sentimentos e pensamentos da personagem.

E trabalhar sentimentos, Scorsese fez melhor que ninguém neste longa. O que mais me impacta em “…Lua das Flores” é esse modo que o cineasta tenta trabalhar os sentimentos do espectador. Ele toma tempo para nos fazer sentir, digerir, entender e compreender o que estamos sentindo, como se também diluísse esses sentimentos. Não é tão fácil assim um filme se permitir tomar tempo para nos fazer sentir e compreender enquanto assistimos. Os sentimentos da raiva, repulsa e indignação, por exemplo, foram sentidos por mim com muita força, ao segmento que, quando desenrolando para o final, só me fazia torcer que de tanto horror e de tanta dor cometido contra esse povo, que tenham tido ao menos um pouco de justiça — mesmo sabendo que não tanto.

E então, o final acontece. Como algum modo de dizer que mesmo após 100 anos dessa história, tendo tido só poucos filmes e pouco conhecimento sobre, agora temos e agora conhecemos. Porque esse também é um dos maiores trunfos do Cinema. O conhecimento.

Como um aviso também que a história dos Osage é o que mostra o pior do homem branco, que é obcecado pelo petróleo e dinheiro desde sempre (até para sempre). Que guerras foram travadas e são financiadas por países que só visam obter lucros de outras terras. É só olharmos as principais notícias do mundo nos dias de hoje.

⭐⭐⭐⭐⭐

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Raquel Oliveira

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